No tempo do Império Habsburgo havia uma cidade na Boêmia chamada Budweis. As pessoas dessa cidade eram chamadas de budweisers e ela tinha uma cervejaria que produzia uma cerveja com o mesmo nome – mas diferente da americana Budweiser. Como muitas comunidades na Boêmia durante aqueles tempos, Budweis tinha uma população de ancestrais tchecos e alemães, que falava línguas diferentes, apesar de muitos serem bilíngües. Eles se davam muito bem e quase todos se consideravam budweisers, ao invés de tchecos ou alemães. Mas, isso mudou mais tarde – para pior – não só em Budweis, mas em toda a Boêmia. O prefeito de Budweis falava tanto tcheco quanto alemão, mas se negava a ser classificado como membro de um dos grupos. Ele afirmava que ‘somos todos budweisers’. Tal como com virtualmente todos os grupos, em virtualmente todos os países e em virtualmente todos os tempos, havia diferenças entre os alemães e tchecos. Os alemães tinham um maior grau de instrução, eram mais prósperos e mais proeminentes nos negócios e nas profissões. A língua alemã tinha, então, uma literatura mais rica e diversa, pois, as línguas eslavas adquiriram versões escritas séculos depois das línguas da Europa Ocidental. Toda a educação do povo, de qualquer etnia, se dava em alemão. Aqueles tchecos que desejassem subir aos altos escalões nos negócios, nas forças armadas ou nas profissões tinham de dominar a língua e a cultura alemã, para se relacionarem com aqueles já nos altos postos. Os povos de ambos os lados aprenderam a conviver com essa situação e os tchecos eram bem-vindos nos enclaves de cultura alemã quando eles dominavam essa cultura. Em Budweis eles podiam ser todos budweisers. Como em muitos outros países e épocas, o advento de uma nova classe intelectual no século XIX polarizou a sociedade por meio de uma política de identidade étnica. Em toda a Boêmia, a nova intelligentzia tcheca pressionava os tchecos a se considerarem tchecos, não boêmios ou budweisers, não qualquer outra coisa que pudesse transcender a sua identidade étnica. Começaram a exigir que as placas e sinais em Praga, que eram antes escritos em tcheco e alemão, fossem, agora, escritos apenas em tcheco. Começaram a exigir que certo percentual de música tcheca fosse executado pela orquestra de Budweiser. Apesar dessas demandas parecerem insignificantes, suas conseqüências não foram pequenas. O povo de ancestralidade alemã resistiu à classificação étnica, mas a intelligentzia tcheca insistia que os políticos tchecos os apoiassem nesse e em vários outros pontos, de pouca ou muita importância. Com o passar do tempo, os alemães também começaram, como autodefesa, a se considerarem alemães, ao invés de boêmios ou budweisers e a defenderem os interesses alemães. Essa polarização étnica no século XIX foi um passo fatal cujas conseqüências ainda não terminaram completamente, mesmo no século XXI. Um momento crucial foi o da criação da nova nação da Tchecoslováquia, quando o Império Habsburgo foi desmantelado depois da I Guerra Mundial. Os líderes tchecos declararam que a missão da nova nação incluía a correção da ‘injustiça social’ no sentido de ‘reparar os erros históricos do século XVII’. Quais foram esses erros? Os nobres tchecos que se revoltaram contra o Império Habsburgo no século XVII foram vencidos e tiveram suas terras confiscadas e dadas aos alemães. Presumivelmente, ninguém do século XVII ainda estava vivo quando a Tchecoslováquia foi criada no século XX, mas os nacionalistas tchecos mantiveram viva a antiga mágoa – tal como os ideólogos da identidade étnica têm feito em países em todo o mundo. Políticas governamentais criadas para desfazer a história, com tratamento preferencial para os tchecos, polarizaram aquela geração de tchecos e alemães. Reações alemãs amargas levaram a exigências de que a parte do país em que eles viviam fosse anexada à vizinha Alemanha. Disso veio a crise de 1938 que desmembrou a Tchecoslováquia na véspera da II Grande Guerra. Quando os nazistas conquistaram todo o país, os alemães dominaram os tchecos. Depois da guerra, a reação tcheca levou a expulsões em massa de alemães sob condições brutais, que custaram muitas vidas. Atualmente, refugiados na Alemanha ainda demandam restituição. Quem dera se as mágoas do passado fossem lá deixadas! Quem dera se eles tivessem todos permanecidos budweisers ou boêmios!
Fonte: Mídia Sem Máscara
Gilles Gomes de Araújo Ferreira
quinta-feira, 9 de março de 2006
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