"Contra todas as dificuldades, todos os obstáculos, todos os percalços, a Galinha Brasuca continua tentando realizar o vôo da redenção. Malgrado as suas asas atrofiadas e o seu peso avantajado, nossa heroína, como boa brasileira que é, não desiste nunca. Mais uma vez, a coitada foi obrigada a aterrissar prematuramente e essa parece não ter sido uma aterragem muito tranqüila. Esborrachou-se, por assim dizer, a infeliz. Depois de um fabuloso esforço para manter-se no ar em 2004, era previsível essa queda ao fim de 2005, afinal a sua fisiologia pouco aerodinâmica e o seu péssimo preparo físico não ajudam na árdua empreitada.
O tombo deixou sem palavras até mesmo o Galo Chefe. Foi então que os seus preclaros asseclas correram a socorrê-lo, tendo sido criadas algumas teorias para explicar o ocorrido. Uns alegaram o de sempre: a maldita taxa de juros do Banco Central, “que só beneficia banqueiros e rentistas”. Outros culparam o “indecente” superávit primário das contas públicas, imposto pelo “perverso modelo neoliberal”. Alguns mencionaram a crise política, ainda que esta última não tenha conseguido fazer cócegas nem na taxa de câmbio, nem no mercado de títulos públicos ou de juros futuros. Houve até quem partisse para o radicalismo e “chutasse o balde” do IBGE, ressuscitando a velha mania terceiro-mundista de culpar o termômetro pela febre alta.
São todas desculpas pra lá de esfarrapadas, claro. Ninguém, fora uns poucos comentaristas, lembrou-se de ulular — com a devida vênia do grande Nelson Rodrigues — o óbvio: que a nossa brava heroína não consegue voar justamente porque, ora pois, ela é só uma galinha; e galinhas não voam.
Os únicos que opinaram com algum grau de oportunidade atiraram no que viram e atingiram o que não viram. Foram os botocudos pichadores do segundo grande vilão do momento (depois de George W. Bush, é claro): o superávit primário. Miraram, como de hábito, no alvo errado: o suposto (aquele que foi sem nunca ter sido) corte de gastos do governo. Acertaram no que não viram, já que o superávit foi resultado de mais um arrocho fiscal sobre a produção e o consumo, esta sim uma das razões que explicam por que a nossa valorosa galinha não consegue se manter no ar.
O que os especialistas não mencionaram foi que a nossa notável galinácea não voará enquanto não fizer uma dieta rigorosa, além de exercícios de musculação vigorosos, que a transformem, senão numa bela águia (com trocadilho), pelo menos numa ágil gaivota. Não há taxa de juros, por menor que seja, que a faça voar alto enquanto mantiverem essa carga (tributária) indecente pesando sobre as suas asas; enquanto continuarem privando a sua liberdade de iniciativa com regulamentações espúrias e sem qualquer sentido; enquanto ela permanecer sufocada por uma burocracia ineficiente e corrupta; enquanto seus pés não forem liberados das amarras (trabalhistas e fiscais); enquanto a justiça do poleiro não se tornar mais ágil; enquanto ela não estiver tranqüila de que os seus direitos de propriedade estão realmente garantidos; enquanto as leis não forem claras e a justiça previsível; enquanto não abrirem, efetivamente, as portas do galinheiro para o exterior; enquanto os galos que mandam não se conscientizarem de que a inflação é o pior e o mais cruel de todos os impostos, pois pune principalmente as aves mais débeis; enquanto não acabarem com os privilégios de toda sorte; enquanto não se produzir um ambiente propício à livre iniciativa, aos negócios e ao desenvolvimento.
Aos manda-chuvas do poleiro, só nos resta dizer: chega de hipocrisia, de mentira, de desinformação, de superficialidade, de demagogia, de populismo. Não pensem que resolveremos todos os nossos problemas simplesmente baixando a taxa de juros! Concentrem os seus esforços nas reformas que realmente interessam. Afinal, como bem disse o velho Einstein, fazer as coisas sempre do mesmo jeito e esperar por um resultado diferente nada mais é do que uma grande demonstração de insanidade."
publicado no jornal O Globo - http://oglobo.globo.com/jornal/opiniao/192017212.asp
Gilles Gomes de Araújo Ferreira
quinta-feira, 2 de março de 2006
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