Gilles Gomes de Araújo Ferreira

quinta-feira, 2 de março de 2006

O feitiche da Vila - Reinaldo Azevedo

Oba! Hugo Chávez já começou a exportar a sua revolução bolivariana. Escolheu o Carnaval para fazer o bonde ideológico no Brasil. Consta que a Vila Isabel, não sei se é verdade, é das poucas escolas não comandadas por alguma forma de crime organizado. Que bom! Saem os traficantes, entra Hugo Chávez. Uns vendem cocaína e maconha; o outro, ditadura e populismo. Escolha a sua droga. Considerando as boas relações do Brasil com as Farc e com o padre Olivério Medina, poder-se-ia aproveitar para fazer uma joint-venture entre o samba, a revolução e o narcotráfico. Os “hermanos” entrariam com o tóxico e a mão-de-obra, e a gente, com a ginga e a manemolência.

Não sou do tipo que fica vendo fantasmas. Acho que não. Chávez financiar uma escola de samba não tem lá grande importância. É difícil ver a população de Vila Isabel organizada em células de assalto à legalidade, a exemplo dos fascistóides que servem ao coronel na Venezuela. Interessante mesmo é investigar os critérios de desempate que deram a vitória à escola. Nesse caso, já se trata de um grupo bem mais restrito: os jurados. Pelo visto, gostaram do samba-enredo da escola, com Simón Bolívar e Che Guevara.

O segundo, vá lá, teve alguma importância no Brasil. Tudo o que há de ideologicamente regressivo no país tem alguma intimidade com Che, ao menos alegada. Já Bolívar, para a América Portuguesa — ou seja, o Brasil —, é um grande nada. Reitero: do ponto de vista estritamente prático, não tem importância. Simbolicamente, indica a contaminação do país pelas forças do atraso. O enredo cantava a unidade latino-americana. A Argentina acaba de impor cotas aos produtos brasileiros, e Kirchner ameaça o Uruguai até com uma guerra. Nunca o samba-do-crioulo-doido foi tão apreciado antes.

Vi uma entrevista com um dirigente da escola. Não cabia em si. Nos menos de 30 segundos em que falou na TV, fez a apologia da integração latino-americana com sotaque claramente chavista. Se, de tal contato, ao menos o Brasil ensinasse a Venezuela a sambar, não haveria mal nenhum. Mas o provável é que aconteça o cruzamento não virtuoso: os venezuelanos é que nos darão aula sobre como tornar um país inviável para sempre.

É relativamente comum que empresas financiem o Carnaval. Melhor que elas o façam do que os cofres públicos. Ocorre que a PDVSA não é uma empresa de mercado, que participa do jogo capitalista como qualquer outra. É um braço da ditadura chavista e sua principal fonte de financiamento. Na prática, uma escola de samba brasileira, que participa de um desfile oficial, está sendo financiada por um governo estrangeiro.

Dá para imaginar a grita na imprensa se, sei lá, o Departamento de Estado dos EUA decidisse doar recursos para uma escola cantar as vantagens da Alca ou a coragem americana de combater o terrorismo no mundo. A escola certamente seria eliminada; arautos da autodeterminação dos povos acusariam a ingerência de um país estrangeiro na cultura nativa; apocalípticos sairiam denunciando a rendição da cultura brasileira aos valores do imperialismo. Afinal, os EUA são uma democracia. Seria realmente detestável que valores tão nefastos e avessos aos direitos humanos quisessem deitar raízes na maior festa de apelo popular (porque “popular” não é) brasileira.

Já uma ditadura injetar dinheiro numa escola, cujo samba-enredo canta as glórias de um facínora como Guevara e, indiretamente, de um ditador como Chávez, bem, isso, claro, é um ato de resistência. Tão de resistência que, dado o empate com outra escola, foi a exaltação velada do autoritarismo que garantiu o desempate. E, como todos vocês sabem, só escrevo isso porque sou um direitista nojento. Os democratas de esquerda se entregaram aos requebros febris do samba-enredo financiado por uma tirania. Mas cheia de bons propósitos.

Eis o autêntico Fetiche da Vila.

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