Gilles Gomes de Araújo Ferreira

sábado, 28 de abril de 2007

Um fato, duas versões

As 32 vítimas de Cho Seung-Hui ainda não descansavam sob a terra, mas a Internacional Jornalística já deixava claro que não perderia a oportunidade de praticar seu passatempo favorito: os joguinhos de tribunal. Quando convém, os modeladores de opinião tiram das gavetas um roteiro escrito e repetido há décadas, fazendo neles pouquíssimas alterações – afinal de contas, os réus são sempre os mesmos.

No caso do Massacre de Blacksburg, o primeiro e mais previsível culpado foi o direito a comprar e portar armas de fogo. O pensamento vulgar é o de que se Cho Seung-Hui não tivesse armas, ele não teria assassinado dezenas de pessoas.

O politicamente correto não é mais do que umas poucas afirmações prontas e acabadas, e é justamente por isso que seduz tantos. Seu simplismo torna desnecessária uma reflexão pensada sobre qualquer assunto. Os liberais-liberais que gritam “sem armas, sem mortes” são o melhor exemplo a ser aplicado aqui. Se se dedicassem a pensar, perceberiam que o mesmo princípio pode servir a causas não tão politicamente corretas. Se não houvessem imigrantes nos Estados Unidos, por exemplo, não haveria Cho Seung-Hui, e não haveria 32 mortos.

Da mesma forma que Jean-Paul Sartre pedia aos seus que mentissem sobre os crimes soviéticos para não desestimular os comunistas franceses, muitos foram os jornais que aderiram à causa dos colaboracionistas sem qualquer preocupação com a coerência. No dia seguinte ao massacre, o The New York Times trazia editorial pedindo mais uma lei restringindo o porte de armas. E nem mesmo um jornal que construiu uma reputação de sobriedade ao longo de séculos, como o The Times, escapou à tentação do discurso fácil. O que poucos jornais publicaram é que sob leis americanas já existentes, Cho Seung-Hui não poderia ter adquirido aquelas armas. O problema, se vê, não é de falta de normas.

Mas, feliz surpresa, um jornal a que nunca dediquei atenção, o Los Angeles Times, escreveu o melhor comentário sobre o acontecido: o massacre “ocasionou uma onda de conclusões apressadas, tomadas de posição instantâneas e o uso de argumentos antigos”.

Outro a se sentar no banco dos réus do tribunal dos eleitos, mas não por isso menos previsível, foi o american way of life. Em entrevista à edição brasileira do Gramna, a CartaCapital, uma psicóloga social contou que, nos sete anos em que viveu nos Estados Unidos, “acostumou-se a, em locais públicos, estar alerta a possíveis atiradores. ‘Lá, isso não é algo inusitado’.” Para a doutora, a raiz de todos os males está na cultura americana:

É algo que permeia o imaginário americano: “Eu elimino meus problemas jogando uma bomba ou atirando”. Também há uma questão política e histórica que não pode ser desprezada. Os EUA são uma sociedade permeada por relações paranóicas.


Em matéria de desvario, no entanto, ninguém venceu o Correio Braziliense:

É traço dominante na cultura norte-americana que a conquista do sucesso a meta principal da vida. (...) Estudos sociais e pesquisas de comportamento há muito difundidos nos meios acadêmicos estadunidenses mostram que a perseguição ao êxito constitui uma das raízes da violência. É que provoca competição acirrada, muitas vezes desbordante da ética, e não raro responsável pelos excessos de conduta. (...)A disposição do Estado norte-americano de buscar pelo uso da força a imposição de seus interesses no plano externo influencia, nos limites internos, atitudes contrárias à urbanidade e à tolerância. (...)Além do senso comum lastreado na competição, pela ânsia de escapar do insucesso, e da prepotência do Estado no tratamento dos desafios externos, o livre porte de armas se junta para formar o sombrio caldo de cultura onde fermenta a violência.


De uma só tacada os editorialistas conseguiram reprovar, além do porte de armas, o capitalismo e o imperialismo. Só faltou escrever que “em Cuba não existem assassinatos em série”.

A tragédia ocorrida em Virginia Tech deixou clara a diferença entre direita e esquerda, no que se refere à conduta humana: a direita acredita na pessoa, no indivíduo, enquanto a esquerda credita as ações deste a circunstâncias externas – o capitalismo, a exploração, a alienação. Para a direita, a explicação para o massacre reside na personalidade psicopata e anti-social de Cho Seung-Hui. Este que planejou o morticínio com semanas de antecedência, se não tivesse armas, encontraria outro meio tão ou mais eficaz para alcançar o efeito desejado. Lembro-me de um estudante de medicina que, há alguns anos, atirou contra a platéia em um cinema de São Paulo. Mais tarde, já preso, ele afirmou que sua primeira intenção era usar uma granada, mas achou que uma metralhadora “teria mais impacto na mídia”.

Para a esquerda, no entanto, o caráter de Cho Seung-Hui é secundário, e a carnificina é responsabilidade primeiro das facilidades de compra de armas em território americano. E em verdade, Cho não era ruim, a cultura e a sociedade americanas o corromperam.

E se esquerda e direita vêem o mesmo problema de maneiras diferentes, a solução que apontam também é diferente. Para a direita, a transformação do indivíduo deve ser particular, introspectiva, valendo-se da religião, da reflexão ou da filosofia. Para a esquerda, no entanto, não há o que mudar no indivíduo, porque ele não é responsável por aquilo que faz, mas no ambiente à sua volta. Os homens são cúpidos e mesquinhos? Ponha abaixo o capitalismo dos gananciosos ou arrume meio de limitá-lo. E só depois hão de chegar à conclusão de que não é só dinheiro o que os homens ambicionam. Começam então a limitar muito mais.

A esquerda ignora que os homens não são iguais, logo não respondem do mesmo modo aos mesmos estímulos. Mas não é só. A triste verdade é que é justamente essa mentalidade que trouxe à luz um facínora.

Não me lembro onde li que existem dois tipos de fracassados: os grandes fracassados, a quem chamamos “mártires”, e os pequenos fracassados, a quem chamam “as vítimas do sistema”. Cho Seung-Hui tinha um “comportamento agressivo”, ateara fogo ao próprio quarto, e seus escritos tinham um misto de obscenidade e violência. Em uma de suas peças, por exemplo, um filho dá marteladas e atira uma serra elétrica no padrasto. Com um perfil como esse, é fácil concluir que Cho não era o mais popular de Blacksburg.

Rejeitou sugestões de pessoas próximas para que procurasse ajuda psiquiátrica. Em sua mente perturbada ele não era o problema, mas as pessoas que se recusavam a aderir à sua realidade doentia.

Não são poucos os que imprimiram um verniz revolucionário às suas derrotas, e Cho Seung-Hui não foge à regra. Uma vez não tendo sucesso, matou 32 pessoas em protesto contra “os meninos ricos”, na tentativa de deixar de ser mera “vítima do sistema” para ascender à condição de “mártir”, como ele mesmo se descrevera.

Enquanto houverem terroristas, genocidas e morticidas venerados como heróis, por qualquer causa que seja, haverá quem queira se juntar a eles.

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