Gilles Gomes de Araújo Ferreira

terça-feira, 19 de dezembro de 2006

Das incongruências

Deputada Federal eleita, Marina Maggessi, em entrevista à Revista IstoÉ, defende as milícias armadas:

Aquele complexo de atividades em volta do Piscinão envolve shows e programas culturais. O tráfico não deixava fazer nada, tudo era cobrado. A milícia entrou e prendeu todo mundo, não teve matança.

Vá na favela Rio das Pedras, onde tem milícia há muito tempo. Lá não tem nem grade nas janelas, ninguém quer sair de lá.


Marina Maggessi defendeu a proibição da venda de armas e munição no referendo do ano passado.

Perguntem ao Gil

A Quinta da Boa Vista, residência oficial dos Imperadores do Brasil, começou a ser restaurada. Há muito se reclama do mau estado de conservação do Palácio, e também há muito sucessivos governos deixaram de investir na preservação da memória física do período monárquico brasileiro.

A reforma será paga pelo American Express, "sem recurso a leis de incentivo fiscal". Há alguns anos, o Banco Real financiou a restauração do Museu do Ipiranga. Ora, o capitalismo! Ora, esse sistema financeiro!

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Poucas Notas

À primeira vista pareceu que o Comitê do Nobel havia deixado para trás a retórica politicamente correta que orientou as escolhas do grupo nos últimos anos. Muhammad Yunus, com o perdão do clichê, prefere ensinar a pescar. Na contramão do ensinamento marxista, afirma que a propriedade privada é fundamental para a erradicação da pobreza - o que atrai a animosidade da esquerda bengalesa, que o acusa de defender o capitalismo.

A esquerda radical disse que estamos plantando as sementes do capitalismo e nos odeiam porque dizem que destruímos qualquer possibilidade de revolução social.


Henrique Raposo, no blogue da Revista Atlântico, provoca:


O desprezo que se deu a Yunus diz muito do nosso querido ocidente. Um homem que, pelo capitalismo, retira uns milhões da miséria não interessa. (...). Se o
trabalho de Yunus desse para culpar directamente o Ocidente, terei todo o tempo de antena do mundo. Como recupera a velha tradição liberal de respeito pela pessoa, pelo trabalho, honra e respeito do indivíduo, sem piedades estatais (ou ocidentais), através de meros empréstimos bancários, de forma simples e sem grandes discursos, naturalmente, não merece atenção.


Domingo. Cerimônia em Oslo. O diretor do Comitê, Ole Danbolt Mjøs, discursa:


Esperamos que este Prêmio signifique uma aproximação com a parte muçulmana do mundo. Desde o 11 de setembro, temos visto uma tendência a demonizar o Islã. (...). Sempre dizemos unilateralmente que a parte muçulmana do mundo tem de aprender com o Ocidente. No que diz respeito a micro-crédito, o contrário é certo: o Ocidente têm aprendido com Yunus, com Bangladesh e com a parte muçulmana do mundo.


Não bastasse uma repetição insistente de "parte muçulmana do mundo", Mjøs enxerta uma questão religiosa que não entra - ou não deveria entrar - no mérito. O merecimento de Yunus reside na economia, não na teologia.

Os clérigos muçulmanos, a bem da verdade, apresentaram-se como empecilho aos projetos de Yunus. "No começo, sofremos uma grande oposição religiosa que nos acusava de destruir o Islã", porque diziam "que as mulheres tinham que continuar sendo donas-de-casa". De todos os beneficiados pelo banco de Yunus, 96% são mulheres.

E Bono ainda chega lá.

_________________________

"Vocês não mais verão a Rainha fumando", declarou a porta-voz da Casa Real dinamarquesa, Lis Frederiksen. Margrethe II habituou-se a ignorar as críticas das diversas organizações não-governamentais dedicadas à eugenia velada, e ela pôde contar com o apoio da imprensa e da maioria dos dinamarqueses. Uma lei aprovada recentemente no Folketing, o parlamento dinamarquês, proibirá o fumo em prédios públicos a partir de abril de 2007. A Rainha decidiu se antecipar.

Margrethe II fará companhia ao Rei da Suécia, Carl XVI Gustaf - que abandonou cigarro em público, mas que também manteve o hábito na privacidade -, e Juan Carlos I, que fuma desde os 14 anos. Na outra ponta estão Harald V, da Noruega, que deixou de fumar há alguns anos, e Elizabeth II - que sobre o cigarro compartilha as mesmas opiniões de sua trisavó, a Rainha Victoria, com o agravante de ter visto o pai morrer em conseqüência de um câncer no pulmão.

Além da Dinamarca, em 2007 França, Lituânia, Inglaterra e País de Gales terão alguma restrição em relação ao tabaco em locais públicos. Somam-se a Argentina, Espanha, Escócia, Vietnã, Austrália, Bélgica, Nova Zelândia, Cuba, Noruega, dentre outros.

Enquanto leis anti-tabaco ganham o mundo, uma notícia chama atenção justamente porque pouca atenção foi dada a ela. Segundo um jornal inglês, Sir Richard Doll, o primeiro a estabelecer uma relação entre fumo e câncer, escondeu que por mais de 20 anos trabalhou a soldo da Monsanto. Nesse período, Sir Richard negou que o Agente Laranja, utilizado na Guerra do Vietnã, pudesse causar câncer - o que foi refutado por estudos posteriores. O Agente Laranja era produzido pela Monsanto.

Doll também esteve na folha de pagamento da Dow Chemicals, antiga Union Carbide - responsável pelo maior desastre industrial do mundo -, da Chemical Manufacturers Association e da Imperial Chemical Industries, para quem ele escreveu um relatório, contestado pela OMS, negando a conexão entre cloreto de vinila e câncer.

Se há cinqüenta anos havia médicos que receitassem cigarros, hoje os fumantes são o alvo principal das patrulhas paternalistas. Eles sabem o que é bom para você. E têm o Estado a tiracolo.

_________________________

Depois dos fumantes, os obesos: há nos EUA quem defenda que os obesos paguem mais impostos, uma vez que têm mais problemas de saúde. E um estudo coloca os gordos como os maiores responsáveis pelo aquecimento global.

_________________________

Pinochet está morto. Ou não. É pouco provável que a esquerda chilena abandone a estratégia eleitoral que utiliza desde a restauração democrática: quando a direita ameaçava a hegemonia da Concertación, os canhotos alertavam para quão imoral era votar em quem esteve ao lado do ditador.

As reações não foram muito além do esperado. A imprensa à direita lembra que Pinochet esteve à frente de um regime autoritário e repressor, mas que a intervenção evitou uma "cubanização" do Chile, em que morreriam muitos mais. Além disso, as medidas econômicas implementadas foram fundamentais para o desenvolvimento de uma economia moderna e uma democracia verdadeiramente livre. A mídia à esquerda lembra da perseguição e da tortura e do apoio que Pinochet recebeu dos Estados Unidos, e critica as reformas econômicas, responsáveis pela concentração de renda, aumento da pobreza e diminuição de salários. Oh, o neoliberalismo...

A morte de Augusto José Ramón Pinochet Ugarte também serviu para rever velhos mitos. Semelhante ao que ocorre com João Goulart no Brasil e Perón na Argentina - e curiosamente não com Batista em Cuba -, no Chile Salvador Allende tornou-se o mártir de um novo mundo anunciado há mais de 150 anos pelas esquerdas revolucionárias. O socialismo democrático era uma prova de que uma outra realidade é possível. Obviamente, os americanos não permitiriam que isso acontecesse. Oh, os americanos...

Allende não foi o herói vendido pela intelligentsia. Teve 35% dos votos em 1970. Chegou ao poder por meio de uma eleição indireta. Ameaçou prender jornalistas. Houve inflação de 500% e racionamento. Donas-de-casa saíam às ruas batendo panelas. Brigou com a Suprema Corte, que denunciou seus planos de expropriação. Seu codinome na KGB era "Líder". Era anti-semita, racista e homofóbico.

Mas não haverá ressurreição maior de mitos do que nos obituários de Fidel Castro.

_________________________

Waldir Pires era Ministro da Controladoria Geral da União enquanto estava ativo o maior esquema de corrupção da História do Brasil. Waldir Pires é Ministro da Defesa enquanto ocorre a maior crise da História da Aeronáutica.

Qual será seu próximo passo?

_________________________

Quando em março o ETA anunciou um "cessar fogo permanente", o Rei de Espanha pediu "cautela" aos negociadores. Nos 32 anos de reinado, Dom Juan Carlos já viu o ETA anunciar o fim da violência 12 vezes, inclusive um "indeterminado e incondicional" em 1998. O Presidente do Governo, José Luis Rodríguez Zapatero, do PSOE - Partido Socialista Obrero Español -, fez pouco do conselho e preferiu repetir a cantilena reformista de que "daqui pra frente, tudo vai ser diferente".

Passados oito meses, os etarras ainda não depuseram as armas. Pelo contrário, em abril cometeram um atentado em Barañaín, no norte de Espanha. O Governo explicou que "o processo de paz ainda não havia começado"! O grupo terrorista explicou que não há conversa antes da autodeterminação do País Basco.

Em junho o ETA emitiu um comunicado em que exige que o Governo francês faça parte das negociações. No fim do mês, Zapatero anuncia o início do processo de paz. Em agosto, os terroristas bascos declaram que as negociações estavam "imersas em uma crise evidente", culpando os socialistas pela situação. Advertiram que "responderiam" se França e Espanha dessem continuidade à "repressão" contra a esquerda local.

Em setembro, novos atentados. Em uma celebração em homenagem a militantes etarras, três membros encapuzados anunciaram que o ETA, em nome da independência e do socialismo, continuará empunhando armas. Em outubro a França acusou o grupo de ter roubado centenas de armas e munição de uma empresa francesa. Afirmou ainda que o contrabando de armamentos continuou depois do cessar fogo.

Em novembro, jovens militantes do Batasuna, o braço político do ETA, tentaram incendiar dois policiais. Os terroristas ameaçaram interromper o processo de paz. A direção do PSOE admitiu que as dúvidas sobre o processo de paz são justificáveis e legítimas. Tarde demais.

Pesquisas recentes mostram que a vantagem dos socialistas sobre os populares é inferior a 1%, e jornais da esquerda, como o El País e o Cadena Ser já admitem uma vitória do Partido Popular nas próximas eleições. Os espanhóis votaram nos socialistas em 2004 para se ver livres do terrorismo. Zapatero tirou as tropas do Iraque, mas cultivou terroristas em casa. O ETA tem ligações com o IRA e as FARC, e nos últimos 38 anos matou mais de 800 pessoas, inclusive o Primeiro-Ministro Luis Carrero Blanco em 1973.

_________________________

"A multidão, quando se vê de posse da autoridade, é ainda mais cruel que os tiranos".
Platão

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

...

La Japonaise
Claude Monet (1840-1926)

domingo, 10 de dezembro de 2006

Augusto José Ramón Pinochet Ugarte (1915-2006)

Morreu o ex-Presidente da Rapública do Chile Auguto Pinochet. Um minuto de silêncio pelo seu passamento. E muitos outros pelos milhares que morreram em sua mão.

Do jornal O Globo

"É por isso que eu voto no hômi".

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Há 15 anos...


Há 15 anos os Presidentes da Rússia, Boris Yeltsin, da Ucrânia, Leonid Kravchuk, e de Belarus, Stanislav Shuskevich, assinavam os Acordos de Belavezha, declarando o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A Guerra Fria acabara. O comunismo perdeu.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

E ainda querem o poder...

Anthony Blair em 1997 e em 2006.

Negócios de além-mar

Venezuela abriga terroristas do ETA e impede que sejam extraditados para a Espanha, onde serão julgados.
Comandante do ETA e esposa, contratados do governo chavista.

Eles não sabem o que é democracia

Acompanhando a comoção mundial que se seguiu à descoberta dos campos de extermínio de judeus na Alemanha Nazista, as Nações Unidas criam em 1948 o Estado de Israel. Nascia democrático o Estado judeu, sob a contante ameaça de ataques dos países árabes. Como retaliação, muitos judeus tiveram propriedades confiscadas em países árabes, foram perseguidos e forçados a emigrar. Em Israel, no entanto, não foram poucos os árabes que decidiram permanecer no recém-criado Estado. Hoje eles somam sete milhões de habitantes, que desfrutam de liberdade civil e religiosa, crescimento econômico, democracia, e um IDH situado entre os melhores do mundo.

O jornal liberal Ha'aretz publica hoje um documento do Comitê Superior Árabe de Supervisão, reinvindicanto autonomia cultural, religiosa e educativa, além do direito de vetar leis que afetem sua comunidade. O documento conta com o apoio de todas as organizações políticas da comunidade árabe.

"Reconhecemos o direito dos judeus, mas não às custas dos árabes", disse o redator do documento, Assad Ghanem. Ele afirmou ainda que Israel foi "criado pelo colonialismo" e que "impôs um Governo colonial a seus cidadãos árabes, incluindo o confisco de suas terras e uma redefinição de sua cultura como judaica". Os dirigentes também exigem uma alteração dos símbolos nacionais, da bandeira e do Hino Nacional, o Hativka (Esperança). Também consideram que Israel não é uma democracia (os árabes-israelenses elegeram 10 dos 120 membros do Knesset, o Parlamento isralense), mas uma etnocracia. Além, claro, de reclamarem um Estado palestino.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

Chapeuzinho Vermelho

Ainda que se chamem "contos de fadas", muitas das histórias contadas às crianças têm origens bem mais maliciosas. Essas fábulas, da maneira como conhecemos, tiveram início com os Contos da Mamãe Ganso, por Charles Perrault, publicados no fim do século XVII. Era uma compilação de narrativas históricas contadas por camponeses, e a fim de satisfazer os pudores da corte de Luís XIV, M. Perrault suprimiu passagens obscenas, orgias, incesto e canibalismo.

Por vezes, as raízes adultas dessas historietas são recuperadas pelos críticos literários. Por exemplo, há quem afirme que Chapeuzinho Vermelho trata da prostituição infantil, haja visto que o manto vermelho era marca das meretrizes da França seiscentista. Para outros especialistas, o chapeuzinho vermelho é um símbolo do ciclo menstrual e da puberdade, avançado sobre a "floresta negra" da feminilidade. O chapeuzinho também seria uma representação do hímen, ameaçado pelo lobo - o sedutor.

Os contos mudam através dos tempos. Na versão medieval de A Bela Adormecida, a princesa é abandonada junto com um punhado de filhos. No original francês de Chapeuzinho Vermelho, a história termina com o lobo devorando tanto a menina quanto a avó. O caçador só surge com os Irmãos Grimm, e hoje foi substituído por um guarda florestal - lembrem-se crianças, não se deve fazer mal aos animais.

Tendo isso em mente, é curioso especular como Chapeuzinho Vermelho seria tratado atualmente pela mídia:

Fantástico - Glória Maria
Que gracinha, gente, vocês não vão acreditar, mas essa menininha linda aqui foi retirada viva da barriga de um lobo, não é mesmo?...

Cidade Alerta - Datena
Onde é que a gente vai parar? Cadê as autoridades? Cadê as autoridades? A menina ia pra casa da vovozinha. A pé! Não tem transporte público! Não tem transporte público! E foi devorada viva. Um lobo, um lobo safado. Põe na tela. Porque eu falo mesmo, não tenho medo de lobo, não tenho medo de lobo não.

Veja
... fulano de tal, 23, o caçador que tirou Chapeuzinho da barriga do lobo, têm sido considerado um herói na região. "O lobo estava dormindo, acho que não foi tão perigoso assim", admite.

Istoé
Gravações revelam que lobo foi assessor de importante político.

CartaCapital
Documentos ligam lobo a Daniel Dantas.

Caros Amigos
Lobo na pele de lobo: a oligarquia mostra a cara.

Cláudia
Como chegar na casa da vovozinha sem se deixar enganar pelos lobos no caminho.

Marie Claire
Na cama com um lobo e minha avó: relato de quem passou por essa experiência.

Nova
Dez maneiras de levar um lobo à loucura...

Caras
Na banheira de hidromassagem na cabana da avozinha, em Campos de Jordão, Chapeuzinho reflete sobre os acontecimentos: "até ser devorada, eu não dava valor para muitas coisas da vida, hoje sou outra pessoa", admite.

Folha de S. Paulo
Manchete: Menina teria sido devorada por lobo.
Na reportagem um box com um zoólogo explicando os hábitos alimentares dos lobos e um infográfico mostrando como Chapeuzinho foi devorada e depois salva pelo caçador.

O Estado de S. Paulo
Lobo que devorou menina seria filiado ao PT.

Agora
Sangue e morte na casa da vovó.

Carta Maior - Blog do Emir
Que outra reassão (sic) poderia ter o lobo diante da provocante atitude da pequena burguesa? A menina rica fez questão de esnobar sua cesta de doces, causando a ira de um sujeito marginalizado pela sociedade capitalista de consumo. O lobo é uma vítima do sistema.

Observatório da Imprensa
... até o momento, nenhum veículo da grande imprensa quis ouvir o canis lupus.

O Dicionário

Machado de Assis

ERA UMA VEZ um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão. Com o fim de a pôr ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima.

— Em mim, bradou ele, podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu.

O primeiro ato do novo rei foi abolir a tanoaria, indenizando os tanoeiros, prestes a derrubá-lo, com o título de Magníficos. O segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a chamar-se, em vez de Bernardino, Bernardão. Particularmente encomendou uma genealogia a um grande doutor dessas matérias, que em pouco mais de uma hora o entroncou a um tal ou qual general romano do século IV, Bernardus Tanoarius; — nome que deu lugar à controvérsia, que ainda dura, querendo uns que o rei Bernardão tivesse sido tanoeiro, e outros que isto não passe de uma confusão deplorável com o nome do fundador da família. Já vimos que esta segunda opinião é a única verdadeira.

Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardão que todos os seus súbditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse ato em uma razão de ordem política, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças. Outro ato em que reveleu igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do pé esquerdo tivessem um pequeno talho no lugar correspondente ao dedo mínimo, dando assim aos seus súbditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de um calo. O uso dos óculos em todo o reino não se explica de outro modo, senão por uma oftalmia que afligiu a Bernardão, logo no segundo ano do reinado. A doença levou-lhe um olho, e foi aqui que se revelou a vocação poética de Bernardão, porque, tendo-lhe dito um dos seus dous ministros, chamado Alfa, que a perda de um olho o fazia igual a Aníbal, — comparação que o lisonjeou muito, — o segundo ministro, Ômega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os olhos. Esta cortesia foi uma revelação; e como isto prende com o casamento, vamos ao casamento.

Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a moça Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que cultivava a música e a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel à dinastia decaída. Bernardão ofereceu-lhe as cousas mais suntuosas e raras, e, por outro lado, a família bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o ilustre Bernardão lhe acenasse com o principado; que os tronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais aquilo. Estrelada, porém resistia à sedução.

Não resistiu muito tempo, mas tàmbém não cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que estava pronta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor madrigal, em concurso. Bernardão aceitou a cláusula, louco de amor e confiado em si: tinha mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças.

Concorreram ao certâmen, que foi anônimo e secreto, vinte pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos outros todos; era justamente o do poeta amado. Bernardão anulou por um decreto o concurso, e mandou abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne maquiavelismo, ordenou que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável de os vencer.

Não venceu ainda assim porque o poeta amado leu à pressa o que pôde, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardão anulou esse segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções antigas davam singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as modernas e particularmente as da moda. Terceiro concurso, e terceira vitória do poeta amado.

Bernardão, furioso, abriu-se com os dous ministros, pedindo-lhes um remédio pronto e enérgico, porque, se não ganhasse a mão de Estrelada, mandaria cortar trezentas mil cabeças. Os dous, tendo consultado algum tempo, voltaram com este alvitre:

— Nós, Alfa e Ômega, estamos designados nelos nossos nomes para as cousas que respeitam à linguagem. A nossa idéia é que Vossa Sublimidade mande recolher todos os dicionários e nos encarregue de compor um vocabulário novo que lhe dará a vitória.

Bernardão assim fez, e os dous meteram-se em casa durante três meses, findos os quais depositaram nas angustas mãos a obra acabada, um livro a que chamaram Dicionário de Babel, porque era realmente a confusão das letras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado, as consoantes trepavam nas consoantes, as vogais diluíam-se nas vogais, palavras de duas sílabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado, nenhuma energia, nenhuma graça, uma língua de cacos e trapos.

— Obrigue Vossa Sublimidade esta língua por um decreto, e está tudo feito.

Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a mão da bela Estrelada. A confusão passou do dicionário aos espíritos; toda a gente andava atônita. Os farsolas cumprimentavam-se na rua pela novas locuções: diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia, como passou? — Pflerrgpxx, rouph, aa? A própria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, propôs-lhe que fugissem; ele, porém, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma cousa. Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte madrigais. O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o do poeta amado. Bernardão, alucinado, mandou cortar as mãos aos dous ministros e foi a única vingança. Estrelada era tão admiravelmente bela, que ele não se atreveu a magoá-la, e cedeu.

Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo, passeando ou meditando. Parece que a última cousa que leu foi uma sátira do poeta Garção, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de encomenda:

O raro Apeles,
Rubens e Rafael, inimitáveis
Não se fizeram pela cor das tintas;
A mistura elegante os fez eternos.