Lá se vão dez dias desde que Anthony Charles Lynton Blair anunciou a data de sua renúncia, após dez anos à frente do Governo de Sua Majestade. E há dez dias a imprensa brasileira não fez mais do mostrar que para ler jornais hoje em dia é um ato de fé sobre-humano.
Em editorial, o jornal O Globo classificou Blair como “um dos mais brilhantes políticos ingleses (sic) após a Segunda Guerra Mundial”. Para o Estado de S. Paulo, ele é “um dos grandes estadistas de sua longeva nação, se não o primeiro do mundo na virada do século”. E segundo o Jornal do Brasil ele é o “quase estadista” que “resgatou a economia do desastre thatcherista”.
Ao mesmo tempo, o Le Figaro publicava que “impopular e desgastado após uma década no poder, [Blair] quer acreditar que a História reservará um bom lugar para seu governo reformista. Aos 43, o mais jovem Primeiro-Ministro britânico desde 1812 investiu em tempo recorde sua liderança. No entanto, escândalos, abusos e a Guerra no Iraque consumiram a imagem do talentoso político. A mágica não funciona mais”.
Existe uma diferença fundamental entre os jornais acima: o Le Figaro tem um excelente correspondente em Londres, Rémi Godeau, enquanto os jornais brasileiros se contentaram a The Economist e alguns indicadores. Esta negligência talvez seja suficiente para explicar porque os redatores brasileiros não perceberam que o mais longo governo trabalhista da História foi um fracasso.
“Blair obteve sucesso em várias frentes. O país prosperou, o desemprego caiu, a inflação foi contida, a renda aumentou”, escreveu O Globo. O Estado de S. Paulo foi além: “Só o tempo permitirá enxergar na plenitude a nova topografia econômica, política, institucional e cultural que os seus 10 anos no poder legaram à Grã-Bretanha”.
De fato, sob o duunvirado Blair-Brown, o desemprego diminuiu, a economia cresceu e dinamizou-se, e Londres tomou de Nova Iorque o título de capital financeira do mundo. O sucesso econômico do Novo Trabalhismo sempre foi apontado como a razão pela qual o Labour venceu três eleições consecutivas, na última já bastante enfraquecido por causa da Guerra do Iraque. Aos conservadores, dentro e fora da Grã-Bretanha, restava dizer que Blair não fez mais do que manter as políticas econômicas de Margaret Thatcher.
Em verdade, o êxito não é tão vistoso quanto aparenta de longe. Uma pesquisa publicada neste mês mostra que 45% dos empresários britânicos acreditam que o Labour foi um mau negócio; apenas 32% discordam. Entre 55 países desenvolvidos, a Grã-Bretanha aparece em 20º em um ranking de competitividade.
Nos últimos anos o gasto governamental cresceu 50%. No entanto, não houve aumento no número de funcionários públicos, nem aumento de produtividade: os britânicos pagam mais pelo mesmo. O governo toma emprestadas £55 bilhões anualmente, o dobro em relação a dez anos atrás.
O número de falências corporativas aumentou 10% em 2006 e chegaram a 20.000 – o maior índice em uma década. E o número de concordatas pessoais – legais no Reino Unido – chegou a 100.000. Só neste primeiro trimestre 30.000 britânicos declararam insolvência. A dívida das famílias atinge £2 trilhões – mais do que o PIB da Grã-Bretanha.
O desastre dos trabalhistas não se restringe à economia. “O efeito Iraque impediu [Blair] de completar outro projeto ambicioso: a reforma dos deteriorados serviços públicos nacionais e a modernização do Estado do Bem-Estar Social”, lamentou o Estadão.
Nos últimos dez anos Anthony Blair promoveu a maior reforma constitucional e institucional de toda a História das velhas ilhas, naquilo que Peter Hitchens denunciou como “golpe de Estado em câmera lenta”. E aqui também ele falhou.
Tomemos o sistema de saúde público britânico. Sempre visto com orgulho pelos britânicos, onde nos tempos áureos estavam 98% dos médicos do país, o National Health Service resistiu até mesmo às medidas neoliberais de Margaret Thatcher, que não só não cortou como aumentou em mais de £ 100 milhões o orçamento do Departamento de Saúde.
A saúde pública era um dos temas centrais dos trabalhistas nas eleições gerais de 1997, que insistiram durante toda a campanha que os eleitores tinham “48 horas para salvar o NHS”. Blair aumentou a verba do NHS e implantou reformas estruturais e financeiras em todo o instituto. Dez anos e quatro secretários depois, são estes os números:
Em 2006 as contas do NHS apresentaram um déficit de mais de £ 1,3 bilhão. 177 Departamentos de Acidente e Emergência, 105 hospitais comunitários e 43 maternidades correm o risco de serem fechados. Os britânicos esperam, em média, 20 semanas para serem atendidos em um hospital público.
Outro tema importante na campanha de 1997 era a educação. Ou como Mr Blair costumava dizer, “educação, educação, educação”. Uma vez assumido o poder, Blair cedeu aos apelos da ala radical do Labour Party e abandonou as grammar school. É comum entre os neandertais trabalhistas, para quem as escolas são elitistas e ultrapassadas, a crença de que a preocupação com a gramática “é coisa de burguesia”. Uma década e cinco Secretários de Educação. Hoje, quase a metade dos adolescentes britânicos entre 10 e 12 anos não sabe ler nem escrever.
Menos da metade dos estudantes obtém mais de cinco notas entre A e C. Mais de uma em cada oito escolas é considerada inadequada.
Não houve instituição que ficasse alheia ao ímpeto reformista dos novos-trabalhistas. Para os britânicos, o símbolo dessa disposição é a tentativa de Blair em tentar extinguir o cargo de Lord Chancellor, um posto 250 anos mais antigo que o próprio Reino da Inglaterra. A função não deixou de existir, não porque Blair mudou de idéia, mas porque ele descobriu, na última hora, que não tinha poderes para isso.
Seu próximo alvo passaram a ser as Royal Prerogatives, os poderes da Coroa – não para extingui-los, mas para colocá-los sob sua pasta. Por exemplo, o poder de declarar guerra e paz. Em uma atitude sem precedentes na História britânica, Blair declarou guerra ao Iraque sem antes obter permissão da Rainha. Ele também tirou poderes e acabou com a hereditariedade na Câmara dos Lordes, substituindo-a por um sistema de nomeações. Mais tarde soube-se que muitos dos nomeados eram doadores do Partido Trabalhista. O escândalo cash-for-peer fez de Blair um revolucionário: foi o primeiro Primeiro-Ministro a ser interrogado pela polícia.
E se o mote é romper tradições, Blair conseguiu como nenhum de seus antecessores quebrar a mais significativa tradição britânica: a liberdade. Desde 2005 é preciso ter permissão para protestar pacificamente nas ruas e praças britânicas. O nome da lei que assim determina é o “Ato Parlamentar do Crime Organizado”.
Na “Grã-Bretanha Bacana” de Anthony Blair, pessoas são condenadas por ler em voz alta os nomes dos soldados e civis mortos no Iraque. Um sobrevivente do Holocausto foi expulso da convenção do Partido Trabalhista por murmurar enquanto o Secretário de Exterior discursava.
Liberdades individuais, privacidade e sigilo também estão em risco. O governo planeja criar um grande banco de dados contendo DNA de cidadãos britânicos, mesmo que eles nunca tenham sido acusados de coisa alguma. O direito a um julgamento justo e a presunção de inocência são para Blair um tolice ultrapassada que pertence “à época de Dickens”.
Há dez anos o Partido Trabalhista tinha 405.000 filiados. Hoje são 198.000. Em 1997 Anthony Blair era o mais popular Primeiro-Ministro da História da Grã-Bretanha, com 75% de aprovação. Hoje esse índice é de 22%, o menor de todos os tempos. Apenas 16% dos britânicos consideram Blair um homem “honesto e correto”. Ele que entrou no número 10 de Downing Street como o “salvador”, anunciando “um novo amanhecer”, deixa o poder desacreditado e aplaudido por uma claque contratada.
Em editorial, o jornal O Globo classificou Blair como “um dos mais brilhantes políticos ingleses (sic) após a Segunda Guerra Mundial”. Para o Estado de S. Paulo, ele é “um dos grandes estadistas de sua longeva nação, se não o primeiro do mundo na virada do século”. E segundo o Jornal do Brasil ele é o “quase estadista” que “resgatou a economia do desastre thatcherista”.
Ao mesmo tempo, o Le Figaro publicava que “impopular e desgastado após uma década no poder, [Blair] quer acreditar que a História reservará um bom lugar para seu governo reformista. Aos 43, o mais jovem Primeiro-Ministro britânico desde 1812 investiu em tempo recorde sua liderança. No entanto, escândalos, abusos e a Guerra no Iraque consumiram a imagem do talentoso político. A mágica não funciona mais”.
Existe uma diferença fundamental entre os jornais acima: o Le Figaro tem um excelente correspondente em Londres, Rémi Godeau, enquanto os jornais brasileiros se contentaram a The Economist e alguns indicadores. Esta negligência talvez seja suficiente para explicar porque os redatores brasileiros não perceberam que o mais longo governo trabalhista da História foi um fracasso.
“Blair obteve sucesso em várias frentes. O país prosperou, o desemprego caiu, a inflação foi contida, a renda aumentou”, escreveu O Globo. O Estado de S. Paulo foi além: “Só o tempo permitirá enxergar na plenitude a nova topografia econômica, política, institucional e cultural que os seus 10 anos no poder legaram à Grã-Bretanha”.
De fato, sob o duunvirado Blair-Brown, o desemprego diminuiu, a economia cresceu e dinamizou-se, e Londres tomou de Nova Iorque o título de capital financeira do mundo. O sucesso econômico do Novo Trabalhismo sempre foi apontado como a razão pela qual o Labour venceu três eleições consecutivas, na última já bastante enfraquecido por causa da Guerra do Iraque. Aos conservadores, dentro e fora da Grã-Bretanha, restava dizer que Blair não fez mais do que manter as políticas econômicas de Margaret Thatcher.
Em verdade, o êxito não é tão vistoso quanto aparenta de longe. Uma pesquisa publicada neste mês mostra que 45% dos empresários britânicos acreditam que o Labour foi um mau negócio; apenas 32% discordam. Entre 55 países desenvolvidos, a Grã-Bretanha aparece em 20º em um ranking de competitividade.
Nos últimos anos o gasto governamental cresceu 50%. No entanto, não houve aumento no número de funcionários públicos, nem aumento de produtividade: os britânicos pagam mais pelo mesmo. O governo toma emprestadas £55 bilhões anualmente, o dobro em relação a dez anos atrás.
O número de falências corporativas aumentou 10% em 2006 e chegaram a 20.000 – o maior índice em uma década. E o número de concordatas pessoais – legais no Reino Unido – chegou a 100.000. Só neste primeiro trimestre 30.000 britânicos declararam insolvência. A dívida das famílias atinge £2 trilhões – mais do que o PIB da Grã-Bretanha.
O desastre dos trabalhistas não se restringe à economia. “O efeito Iraque impediu [Blair] de completar outro projeto ambicioso: a reforma dos deteriorados serviços públicos nacionais e a modernização do Estado do Bem-Estar Social”, lamentou o Estadão.
Nos últimos dez anos Anthony Blair promoveu a maior reforma constitucional e institucional de toda a História das velhas ilhas, naquilo que Peter Hitchens denunciou como “golpe de Estado em câmera lenta”. E aqui também ele falhou.
Tomemos o sistema de saúde público britânico. Sempre visto com orgulho pelos britânicos, onde nos tempos áureos estavam 98% dos médicos do país, o National Health Service resistiu até mesmo às medidas neoliberais de Margaret Thatcher, que não só não cortou como aumentou em mais de £ 100 milhões o orçamento do Departamento de Saúde.
A saúde pública era um dos temas centrais dos trabalhistas nas eleições gerais de 1997, que insistiram durante toda a campanha que os eleitores tinham “48 horas para salvar o NHS”. Blair aumentou a verba do NHS e implantou reformas estruturais e financeiras em todo o instituto. Dez anos e quatro secretários depois, são estes os números:
Em 2006 as contas do NHS apresentaram um déficit de mais de £ 1,3 bilhão. 177 Departamentos de Acidente e Emergência, 105 hospitais comunitários e 43 maternidades correm o risco de serem fechados. Os britânicos esperam, em média, 20 semanas para serem atendidos em um hospital público.
Outro tema importante na campanha de 1997 era a educação. Ou como Mr Blair costumava dizer, “educação, educação, educação”. Uma vez assumido o poder, Blair cedeu aos apelos da ala radical do Labour Party e abandonou as grammar school. É comum entre os neandertais trabalhistas, para quem as escolas são elitistas e ultrapassadas, a crença de que a preocupação com a gramática “é coisa de burguesia”. Uma década e cinco Secretários de Educação. Hoje, quase a metade dos adolescentes britânicos entre 10 e 12 anos não sabe ler nem escrever.
Menos da metade dos estudantes obtém mais de cinco notas entre A e C. Mais de uma em cada oito escolas é considerada inadequada.
Não houve instituição que ficasse alheia ao ímpeto reformista dos novos-trabalhistas. Para os britânicos, o símbolo dessa disposição é a tentativa de Blair em tentar extinguir o cargo de Lord Chancellor, um posto 250 anos mais antigo que o próprio Reino da Inglaterra. A função não deixou de existir, não porque Blair mudou de idéia, mas porque ele descobriu, na última hora, que não tinha poderes para isso.
Seu próximo alvo passaram a ser as Royal Prerogatives, os poderes da Coroa – não para extingui-los, mas para colocá-los sob sua pasta. Por exemplo, o poder de declarar guerra e paz. Em uma atitude sem precedentes na História britânica, Blair declarou guerra ao Iraque sem antes obter permissão da Rainha. Ele também tirou poderes e acabou com a hereditariedade na Câmara dos Lordes, substituindo-a por um sistema de nomeações. Mais tarde soube-se que muitos dos nomeados eram doadores do Partido Trabalhista. O escândalo cash-for-peer fez de Blair um revolucionário: foi o primeiro Primeiro-Ministro a ser interrogado pela polícia.
E se o mote é romper tradições, Blair conseguiu como nenhum de seus antecessores quebrar a mais significativa tradição britânica: a liberdade. Desde 2005 é preciso ter permissão para protestar pacificamente nas ruas e praças britânicas. O nome da lei que assim determina é o “Ato Parlamentar do Crime Organizado”.
Na “Grã-Bretanha Bacana” de Anthony Blair, pessoas são condenadas por ler em voz alta os nomes dos soldados e civis mortos no Iraque. Um sobrevivente do Holocausto foi expulso da convenção do Partido Trabalhista por murmurar enquanto o Secretário de Exterior discursava.
Liberdades individuais, privacidade e sigilo também estão em risco. O governo planeja criar um grande banco de dados contendo DNA de cidadãos britânicos, mesmo que eles nunca tenham sido acusados de coisa alguma. O direito a um julgamento justo e a presunção de inocência são para Blair um tolice ultrapassada que pertence “à época de Dickens”.
Há dez anos o Partido Trabalhista tinha 405.000 filiados. Hoje são 198.000. Em 1997 Anthony Blair era o mais popular Primeiro-Ministro da História da Grã-Bretanha, com 75% de aprovação. Hoje esse índice é de 22%, o menor de todos os tempos. Apenas 16% dos britânicos consideram Blair um homem “honesto e correto”. Ele que entrou no número 10 de Downing Street como o “salvador”, anunciando “um novo amanhecer”, deixa o poder desacreditado e aplaudido por uma claque contratada.
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