Gilles Gomes de Araújo Ferreira

domingo, 28 de janeiro de 2007

A literatura em perigo | Vasco Graça Moura

Comprei há dias em Estrasburgo um pequeno ensaio de Tzvetan Todorov intitulado La littérature en péril (Paris, Flammarion, 2007), que acabou de sair e cuja leitura recomendo a quantos se interessam pelas questões do ensino da literatura, muito em especial no secundário.

Todorov, que colaborou desde 1966 com Roland Barthes e Gérard Genette, afigura-se hoje, e pelo menos neste seu texto, muito mitigadamente ligado ao estruturalismo, embora não o renegue.

Em La littérature en péril ele parte do princípio de que o que interessa para a generalidade dos leitores é fundamentalmente a compreensão do sentido das obras literárias, sendo para essa compreensão que devem ser proporcionadas as abordagens adequadas na escola. Isto porque cada obra tem um sentido portador de modalidades insubstituíveis de compreensão do mundo e de nós mesmos, ao veicular experiências singulares e criar personagens na diversidade do vivido que tornam possível um enquadramento e um conhecimento mais profundos da realidade humana nas suas múltiplas dimensões. Ora, como ele diz, os grandes autores ensinam-nos pelo menos tanto sobre a condição humana como os maiores sociólogos, psicólogos e filósofos.

A proliferação de análises radicadas nos mais diversos pressupostos teóricos acarreta uma grande distorção quanto a esse objectivo. Os programas escolares exigem aos alunos, não propriamente o conhecimento das obras, mas antes o das teorias, métodos, classificações e instrumentos analíticos, de tal modo que eles têm de aprender a captar, não o sentido de determinada obra ou a vibração existencial que ela provoca ao desvendar-se na leitura, mas uma determinada grelha de análise dela, e esta imposição contribui em grande medida para gerar um desinteresse generalizado e crescente em relação à literatura.

Todorov faz um lúcido bosquejo da evolução da estética a partir do século XVII, percorre várias construções teóricas (desconstrucionismo, estruturalismo "clássico", pós-estruturalismo, etc.) que negam ser a literatura um discurso sobre o mundo, ou que afastam a hipótese de verdade dos textos, ou que rejeitam a possibilidade de verificação dela, e, embora protestando não denegrir disciplinas como a semiótica, a pragmática, a retórica e a poética, interroga-se sobre se "é preciso fazer delas a principal matéria estudada na escola", uma vez que "todos esses objectos de conhecimento são construções abstractas, forjadas pela análise literária para abordar as obras; nenhum respeita àquilo de que falam as obras propriamente ditas, o seu sentido, o mundo que elas evocam". E por isso "a análise das obras na escola não deveria mais ter por finalidade ilustrar os conceitos que acaba de introduzir este ou aquele linguista, este ou aquele teórico da literatura, mas fazer-nos aceder a todos ao sentido delas, que nos conduz a um conhecimento do humano que a todos importa".

Sendo assim, Todorov propõe que o ensino volte a recentrar-se nos textos, uma vez que os instrumentos teóricos não passam de meios de acesso, que até podem ser úteis, mas cujo estudo "nunca se deve substituir ao do sentido, que é a sua finalidade".

Não basta, escreve ainda, a estrita abordagem interna de um texto, porque as obras existem sempre num contexto e em diálogo com ele. "Em regra, o leitor não profissional (...) lê essas obras, não para dominar melhor um método de leitura, nem para dele extrair informações sobre as sociedades em que elas foram criadas, mas para nelas encontrar um sentido que lhe permita compreender melhor o homem e o mundo, para nelas descobrir uma beleza que enriqueça a sua existência; fazendo-o, compreende-se melhor a si mesmo. O conhecimento da literatura não é um fim em si, mas uma das estradas reais que conduzem à realização de cada um." Ora o ensino volta as costas a este caminho... "Porquê estudar a literatura se ela não passa da ilustração dos meios necessários para a sua análise?" E ainda: "O ensino secundário, que não se dirige aos especialistas da literatura, mas a todos, não pode ter o mesmo objecto [do ensino superior]: é a literatura propriamente dita que é destinada a todos, não os estudos literários." Por fim, a grande questão: "E ter como professores Shakespeare e Sófocles, Dostoievski e Proust, não é beneficiar de um ensino excepcional?"

Percorre-se este conjunto de tópicos e também não se pode deixar de perguntar: em que país bem nosso conhecido é que estas ideias são tão necessárias como o pão para a boca?


Publicado no Diário de Notícias.

domingo, 14 de janeiro de 2007

Poucas Notas

Em dezembro passado um oficial acusado de corrupção acusou o Príncipe Laurent, filho caçula do Rei Albert II dos Belgas, de fazer parte de um esquema que desviou dois milhões de euros dos cofres da Marinha. Situação reprovável, mas não inédita: Chelsea Clinton, única filha do ex-Presidente dos Estados Unidos William Clinton, deixou a universidade com um diploma em História e um salário de seis dígitos em uma consultoria financeira; Kojo Annan, filho do ex-Secretário-Geral das Nações Unidas Kofi Annan, esteve envolvido no escândalo de corrupção do extinto Programa Petróleo por Comida; e claro, há Fábio Luiz da Silva, símbolo máximo do "espetáculo do crescimento" petista, que em quatro anos foi catapultado de um zoológico à sociedade de uma empresa milionária com parceria com empresas públicas.

Mas houve um significativo ineditismo neste acontecimento, desempenhado não pelo protagonista, mas por quem esteve alheio ao caso: no domingo 24, em sua tradicional mensagem natalina, o Rei Albert frisou que "ninguém está acima da lei e a Justiça deve trabalhar com total independência". Era uma mensagem clara ao descendente infeliz, ou assim foi interpretado pelos jornais. O monarca exigiu ainda que Laurent ressarça os cofres públicos, ainda que seja inocentado pelo Judiciário. "É justo que a reparação envolva todos os que se beneficiaram do esquema", nas palavras dele.

De acordo com o espanhol El Mundo, os promotores acreditam que o Príncipe não sabia da origem escusa do dinheiro, e que as acusações fazem parte de uma estratégia dos investigados para desviar o rumo dos inquéritos.

Em editorial, o La Libre Belgique ressaltou a "coragem" de Albert II ao censurar publicamente o filho, lembrando que "o exemplo deve vir de cima". De linha opinativa tradicionalista, o La Libre Belgique repete um dos argumentos centrais do monarquismo: ainda que não disponham de poderes políticos diretos, os soberanos dispõem de ascendência moral sobre seus cidadãos e servidores públicos. Nesse sentido foi a manchete do jornal popular Le Derniere Heure, que afirmou que a mensagem também censurava a classe política pelos sucessivos escândalos de corrupção.

Em 2005, enquanto corria a CPMI dos Correios, o jornal O Globo lembrou uma passagem da História do Brasil em que uma graduada autoridade pública argumentava que não podia indicar o irmão para uma função governamental porque temia o julgamento do Imperador. Dom Pedro II anotava todos os desvios de conduta, e manifestava objeções quando eram sugeridas promoções a algum improbo. Com um lápis azul, ele sublinhava os nomes de quem não considerava apto para lidar com o dinheiro público. Ainda que não tivesse importância legal, poucos duvidavam do seu julgamento.

Nas palavras de um republicano arrependido, Rui Barbosa, em discurso no Senado Federal em 1914,

No outro regime [a Monarquia], o homem que tinha uma certa nódoa em sua vida era um homem perdido para todo o sempre - as carreiras políticas lhe estavam fechadas. Havia um sentinela vigilante, cuja severidade todos temiam, e que, acesa no alto, guardava a redondeza, como um farol que não se apaga, em proveito da honra, da justiça e da moralidade. Era o Imperador Dom Pedro II.


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Aqueles que acompanham o blogue há algum tempo vão se lembrar de um post que tratava dos excessos de alguns defensores de animais. O assunto central era o projeto de lei elaborado pelo Partido Socialista Obrero Español que estendia aos primatas as leis de defesa dos direitos humanos.

Os socialistas espanhóis sempre encontraram refúgio do outro lado da Mancha. Os trabalhistas britânicos foram os únicos que apoiaram as negociações com o ETA, e os dois partidos compartilham idéias sobre multiculturalismo, religião, economia, política social e direitos humanos.

O Finantial Times publicou matéria em que afirma que um relatório do Governo britânico prevê que robôs devem gozar das leis de defesa dos direitos humanos. Sir David King, que apresentou o projeto, elenca alguns deles, como auxílio de complementação de renda, auxílio moradia e um sistema de saúde para robôs.

Sir David considera o aquecimento global "o mais grave problema da atualidade - mais grave até do que o terrorismo".

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O politicamente correto é o refúgio dos que se abstém de usar a razão, por covardia ou inaptidão para tal exercício. É deveras fácil esconder-se atrás de premissas previamente aceitas, ascendendo ao clube dos bem-intencionados.

Não lembro quem disse que a direita venceu a guerra econômica e perdeu a guerra cultural, mas o que importa é que estava certo. Qualquer observador atento percebe que fariseus conquistaram os jornais, o cinema, a música e a televisão. O politicamente correto é parte desta estratégia. Surgiu na década de 1970 criado por intelectuais maoístas que intentavam desacreditar princípios que consideravam ortodoxos.

A Rede Globo comprou a briga do aquecimento global. Agora o Fantástico e os telejornais repetem à exaustão que o fim do mundo está virando a esquina, graças à ambição, à ganância e a Coca-Cola.

O conservador jornalista Peregrine Worsthorne acredita que é preciso reexaminar o liberalismo nos moldes do que ocorreu à cristandade no século XVIII. Em junho do ano passado, em discurso em um dos mais tradicionais clubes conservadores, o Atheneaum Club, Sir Peregrine citou como exemplo a liberdade de imprensa. "O argumento liberal para a importância da liberdade de imprensa era que isso dava aos eleitores informação necessária para votar inteligentemente"; a maioria dos jornais, no entanto, "prefere a informação deturpada ou até mesmo a desinformação". No caso brasileiro, isso fica latente.

Nenhuma mídia se preocupou em contestar o raciocínio dos mensageiros do apocalipse, nem em garantir espaço a quem se predispôs a fazê-lo. Nem mesmo a imprensa "de direita" - leia-se, Estado de S. Paulo e Veja. Quando muito, informam au passant que há cientistas que não concordam com a suposição; pior fez o Fantástico, cujo repórter afirmou que "até quem não acreditava" passou a adotar medidas que visam amenizar as mudanças climáticas.

Como o desarmamento há dois anos, a batalha contra o aquecimento global é vendida como condição sine qua non para a salvação. E os fariseus continuam ganhando a guerra.

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No apagar das luzes de 2006 o Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, acusou promotores e procuradores de usarem a instituição para fazer política partidária. Segundo o Ministro, 80% das denúncias de improbidade são desconsideradas pela Corte, por falta de provas e de base legal. Desde que o Partido chegou ao poder, sumiram dos jornais notícias dando conta de que “o Ministério Público abriu inquérito para investigar denúncia”, bem como os procuradores pop-star, e boa parte do jornalismo investigativo.

Agora o Ministério Público volta às manchetes. Acusa o Deputado Federal Raul Jungmann (PPS-PE) de desvio de dinheiro público à época em que foi Ministro do Desenvolvimento Agrário no governo do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso. É pouco crível a idéia de que não há motivação política em uma denúncia feita seis anos depois de Jungmann deixar o Executivo. Ainda mais se levarmos em consideração que o nome do Deputado aparecia com freqüência quando era sugerida uma terceira opção para a Presidência da Câmara.

O que desperta interesse nesse assunto, por outro lado, é a maneira como “formadores de opinião” se apressaram em apresentar panos quentes. Em jornais e blogues, diversas vozes se levantaram para defender o Deputado, transformado, junto com Fernando Gabeira (PV-RJ), em guardião da moralidade pública.

Não é a primeira vez que a imprensa elege “intocáveis”. Também não é a primeira vez que erram na escolha. Enquanto Ministro, Jungmann adotou medidas que podem ser consideradas, no mínimo, suspeitas. Uma rápida procura em arquivos de jornais é suficiente para estimular a memória.

No final de outubro de 2001, para citar um exemplo, o então Ministro do Desenvolvimento Agrário contratou uma empresa de publicidade para gastar R$ 2,7 milhões até dezembro do mesmo ano. Sem licitação. Nesse ano, os gastos do Ministério com comunicação aumentaram 66,32% em relação ao ano anterior, e em 2002 o aumento foi um pouco menor, 31,35%.

Também em 2002, Jungmann lançou-se candidato à Presidência da República. Dias depois, utilizou a máquina pública para apresentar ao eleitorado um balanço de sua gestão. “Acabamos com a corrupção, com os funcionários fantasmas e com o nepotismo. (...) E um sonho de paz no campo é um sonho de paz para todos nós, nas cidades ou em qualquer lugar. E nós estamos construindo isso”. A Folha de S. Paulo publicaria ainda que os números de assentamentos foram inflados, contabilizando áreas que só existem nos documentos e terrenos vazios. O Incra admitiu que os números foram alterados.

Ciente do poder da informação e da notícia, Raul Jungmann tornou-se amigo de jornalistas, e até mesmo os mais conservadores parecem seduzidos pela “falasofia” esquerdista do pernambucano. Outro político, José Roberto Arruda, atual Governador do Distrito Federal, também foi incensado por certa mídia no ano passado e apresentado como baluarte dos bons costumes, apagando do seu histórico a participação na famigerada violação do painel do Senado Federal.

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Em tempo: apenas os desavisados podem alegar surpresa diante da adesão dos tucanos à candidatura do petista Arlindo Chinaglia (PT-SP). Em junho do ano passado o jornalista Jorge Bastos Moreno, em seu blogue e em sua coluna no jornal O Globo, revelou que lideranças dos dois maiores partidos da esquerda brasileira estavam articulando "um governo de coalizão para 2007", não importando o resultado da eleição presidencial. Moreno afirmava, à época, que poucos acreditariam naquela informação, e lembrou o exemplo do jornalista Carlos Marchi, do Jornal do Brasil, que também noticiou as negociações que levaram à formação da aliança entre o então Governador de Minas Gerais Tancredo Neves e dissidentes do PDS.



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“A tendência do intelectual é ser de direita. Ele é por definição um elitista”.
Paulo Francis